Faca nos Dentes

quarta-feira, 9 de novembro de 2016


Não temos muito tempo para amar 

a luz vai desaparecendo,
as coisas que amamos são as mesmas
que em breve perderemos.

Os piores vestidos são os que

diariamente se vão usar.
Os teus cabelos já te vi pentear,
em silêncio - íntimo,
escuro e caloroso.

Tentaria tocar-te num braço,

mas escolhi não o fazer.

Podia, mas não quis, quebrar

aquilo que se mantém imóvel.
(O mais ténue suspiro
quase seria um estridente grito).

Por isso, os momentos passam

como se quisessem ficar.
E não temos muito tempo para amar.
Uma noite. Um dia...


Tennessee Williams, Alguns Poemas, Língua Morta.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Recado

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer – vai por esse campo
de crateras extintas – vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo – deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração – ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna – o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira – não esqueças o ouro
o marfim – os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço

 in Horto de incêndio, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997















Foto - Paulo Nozolino

segunda-feira, 12 de abril de 2010

quinta-feira, 16 de abril de 2009





Tu t'en vas à la dérive
Sur la rivière du souvenir
Et moi, courant sur la rive,
Je te crie de revenir
Mais, lentement, tu t'éloignes
Et dans ma course éperdue,
Peu à peu, je te regagne
Un peu de terrain perdu.

De temps en temps, tu t'enfonces
Dans le liquide mouvant
Ou bien, frôlant quelques ronces,
Tu hésites et tu m'attends
En te cachant la figure
Dans ta robe retroussée,
De peur que ne te défigurent
Et la honte et les regrets.

Tu n'es plus qu'une pauvre épave,
Chienne crevée au fil de l'eau
Mais je reste ton esclave
Et plonge dans le ruisseau
Quand le souvenir s'arrête
Et l'océan de l'oubli,
Brisant nos cœurs et nos têtes,
A jamais, nous réunit.
Serge Gaisnbourg - La Noyée

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Rádio Pirata







há uma cidade a rebentar na humidade vertiginosa da noite e um homem com olhar de açúcar encostado ao néon melancólico das esquinas espera o próximo shoot de heroína...


há uma cidade por baixo da pele e uma casa de sangue coagulado na memória atravessada por canos rotos e um corpo pingando mágoas...
há uma cidade de alarmes e um tilt lancinante de flipper dentro do meu pulmão adolescente e uma dor de chuva fustigando o sexo adormecido no soalho do quarto de pensão...

há uma cidade de visco e de esperma ressequido e uma pastilha elástica presa ao fum puto e um cão de febre...undo dum copo...

há um sorriso e um engate e um camóne e um arrebenta e uma boca de lodo aberta sobre o rio...
há uma cidade de fome e lixo enquanto o ciúme escorrega das mãos dos amantes...
há um dedo de lâminas usadas e um beco sem saída onde se enroscou
há uma cidade crescendo no grito e na gasolina no fogo nocturno da minha vertigem presa nas alturas de cimento armado onde coabitam sexos mergulhados em naftalina...
há um osso branco que perfura a insónia e a madrugada e esta cidade de nojo e de fascínio...
há uma navalha cortando o betão das avenidas e um pássaro de enxofre nas feridas duras dos cabelos...
há uma cidade de estátuas desmanteladas contra o espelho dum bordel e a luz do teu olhar dentro duma janela antiga...
há uma cidade que se escapa para fora da noite espia avança e mata...
há uma cidade de trapos queimados e de vozes ardendo e uma toalha para limpar o sono dos poucos brinquedos...
há uma alucinação furiosa que me incendeia a veia e revela teu rosto lívido que se suicida...
há uma cidade de papel engordurado que eu amachuco com o pânico nos dentes e todo o meu corpo sangra... treme... e tem medo... e morre...

Al berto



sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Sim




«Penso: talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu
mas em cima dele; talvez a gente veja as coisas ao contrário e a terra seja como um céu e quando
a gente morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu.»
(excertos de «Nenhum Olhar» de José Luís Peixoto)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008